MARAVILHOSA GRAÇA – SOLA GRATIA

Fazei que eu Vos conheça, ó Conhecedor de mim mesmo, sim, que Vos conheça como de Vós sou conhecido. Ó virtude da minha alma, entrai nela, adaptai-a a Vós, para a terdes e possuirdes sem mancha nem ruga. É esta a esperança com que falo, a esperança em que me alegro quando gozo duma alegria sã. (Agostinho de Hipona)[1]

            A oração de Agostino é muito importante para nós, pois em muitos aspectos é riquíssima e cheia de verdades que deveríamos ter de uma dimensão mais profunda sobre a necessidade da graça. Dentre elas, destaco a consciência da “miséria humana” enfatizada na incapacidade de conhecer a Deus, de produzir virtude ou santidade. Ao longo da história da igreja, essa miséria passou a ser chamada de “depravação total”, tema de profunda discussão teológica, ponto essencial para a compreensão do Evangelho.

A depravação da humanidade e o justo juízo de Deus

            A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e injustiça dos seres humanos que, por meio da sua injustiça, suprimem a verdade. Pois o que se pode conhecer a respeito de Deus é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Romanos 1:18,19

            Desde a queda de Adão herdamos o pecado em nossa existência (Sl 51.5). Ao contrário do que pensam muitas pessoas, o pecado não é um mal externo a nós, apresentado ao longo de uma maturidade pós-infância. O pecado é uma realidade coexistente nos filhos de Adão (Rm 5.12).

            Se não bastasse a maldade em nós, o nosso pecado é amarmos as trevas e rejeitarmos a Deus (Jo 3.19) e a carta de Paulo aos Romanos demonstra isso de várias formas. Se Deus está irado, como diz o Apóstolo, com razão Ele o faz, pois mesmo se autorrevelando (Rm 1.20) não há quem busque o seu favor; a rejeição à graça de Deus torna a raça humana quanto mais indesculpável diante do Eterno e Santo Deus.

Como está escrito: “Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus. Todos se desviaram e juntamente se tornaram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua enganam, veneno de víbora está nos seus lábios. A boca, eles a têm cheia de maldição e amargura; os seus pés são velozes para derramar sangue. Nos seus caminhos, há destruição e miséria; eles não conhecem o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos. “Ora, sabemos que tudo o que a lei diz é dito aos que vivem sob a lei, para que toda boca se cale, e todo o mundo seja culpável diante de Deus. Porque ninguém será justificado diante de Deus por obras da lei, pois pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Mas, agora, sem lei, a justiça de Deus se manifestou, sendo testemunhada pela Lei e pelos Profetas. (Rm 3.10-21)

Pelágio e Agostinho

            Pelágio, monge ascético britânico do século V, é o responsável pelo pelagianismo: doutrina que enfatiza a autonomia humana ou o livre arbítrio. Na prática, Pelágio defendia que na salvação era o ser humano quem tomava a iniciativa e lutava por si mesmo para uma perfeita santificação. A sutileza dessa doutrina colocava no homem uma capacidade que este jamais o teve, como se a corrupção provocada pelo pecado de Adão não fosse inata ao nascimento. Agostinho, bispo de Hipona, reagiu violentamente contra esta heresia, “insistindo na prioridade da graça divina em cada estágio da vida cristã”[2]. Alister MacGrath, pastor anglicano e professor de teologia, diz:

Segundo Agostinho, os seres humanos não possuíam a liberdade necessária para dar os primeiros passos em direção à salvação. Longe de possuir “liberdade de escolha, os seres humanos possuíam um desejo, que fora corrompido e maculado pelo pecado e que os inclinava na direção do mal e para longe de Deus. Somente a graça de Deus poderia neutralizar essa propensão para o pecado. A defesa da graça feita por Agostinho foi tão ardente que, posteriormente, veio a ser conhecido como “doutor da graça” (doctorgratiae). Um tema central do pensamento de Agostinho é a corrupção da natureza humana. A imagem da “Queda” deriva-se de Génesis 3 e exprime a idéia de que a natureza humana “decaiu” de sua condição original de pureza (p.59).

            Desde o início da igreja, diversas doutrinas contrárias as Escrituras se infiltraram visando afastar as pessoas do caminho de salvação. Calvino chamou o pelagianismo de “artimanha de Satanás para encobrir a enfermidade humana, ele tentou torná-la incurável”[3]. Não é à toa que muitas igrejas não só flertaram com a doutrina pelagiana, mas também abraçaram suas ideias a níveis elevadíssimos.

Para Agostinho de Hipona, a humanidade, se deixada por conta própria e apenas com seus recursos, jamais poderia se relacionar com Deus. Nada do que um homem ou uma mulher fosse capaz de fazer poderia quebrar a opressão do pecado. Usando uma imagem, que Agostinho foi feliz o suficiente para nunca haver testemunhado, seria como um viciado em drogas tentando se livrar das garras da heroína ou da cocaína. A situação não pode ser transformada por si mesma, portanto, a transformação deve ocorrer por meio de algo extrínseco à condição humana. De acordo com Agostinho, Deus intervém no dilema humano. Deus não precisava fazê-lo, mas por amor à humanidade caída, Deus assumiu a condição humana, na pessoa de Jesus Cristo, para nos salvar (MACGRATH p. 60).

Post Tenebras Lux

            A idade média foi um período obscuro para a igreja e sociedade em vários sentidos, mas aquele período de trevas não foi totalmente improdutivo. Não podemos generalizar dizendo absurdos, como se Deus houvesse deixado de agir no meio do seu povo eleito. Devemos, sim, observar que o Evangelho estava perdendo força entre os povos, sendo deturpado em grande parte da igreja daquele tempo, o cenário para muitos era desesperançoso.

            A venda de indulgências com objetivo de arrecadar fundos para o término da construção da basílica de São Pedro em Roma, foi um dos pontos tratados nas 95 teses de Lutero. Acabar com essa prática seria uma das consequências do retorno ao Evangelho. Justo Gonzáles, historiador da igreja, compartilha como as vendas de indulgê­ncias aconteciam na Alemanha de Lutero[4].

            Quem se encarregou da venda das indulgências na Alemanha Central foi o dominicano João Tetzel, homem sem escrúpulos que fazia afirmações vergonhosas com a intenção de promover sua mercadoria. Por exemplo, Tetzel e seus subalternos proclamavam que a indulgência que vendiam deixava o pecador “mais limpo do que saíra do batismo”, ou “mais limpo do que Adão antes de cair”; que “a cruz do vendedor de indulgências tinha tanto poder como a cruz de Cristo” e que, no caso de alguém comprar uma indulgência para um parente já morto, “tão pronto a moeda caísse no cofre, a alma saía do purgatório” (p. 34).

            Além dos problemas de natureza religiosa, havia outros desvios sociais e morais; diversos fatores culminaram para uma reforma. Não à toa, um dos lemas da reforma é justamente Post Tenebras Lux (frase atribuída a Calvino) “Após as trevas, Luz”. É isso que a reforma representa na história: um raio de sol dissipando a escuridão de uma vida em sociedade longe de Deus e de sua Palavra. A igreja verdadeira e o Evangelho seriam libertos de seu cativeiro para novamente brilhar a luz de Cristo ao mundo!

Do pecado para a salvação pela graça

e estando nós mortos em nossas transgressões, nos deu vida juntamente com Cristo — pela graça vocês são salvos —e juntamente com ele nos ressuscitou e com ele nos fez assentar nas regiões celestiais em Cristo Jesus.Deus fez isso para mostrar nos tempos vindouros a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus.Porque pela graça vocês são salvos, mediante a fé; e isto não vem de vocês, é dom de Deus;não de obras, para que ninguém se glorie. (Ef 2.5-9)

            A ignorância do conhecimento da própria miséria é inimiga da verdadeira conversão a Cristo; aquele que não reconhece sua depravação e a gravidade do seu pecado nunca almejará ser liberto dessa condição. Para as pessoas que não se enxergam à luz das Escrituras como inimigos de Deus, a oferta do Evangelho se torna “pérola a porcos” como disse Jesus (Mt 7.6), o ser humano sem a consciência do seu pecado despreza as boas novas como se não houvesse valor. Outro erro é abraçar apenas uma parte da boa notícia, como se Jesus se tornasse apenas um complemento à nossa já estabelecida vida boa.

            Mas o Evangelho não é um complemento à minha vida, Ele não é um resultado do que eu faço para alcançar a recompensa da minha destreza diante de Deus. Pessoas que se batizaram e participam do corpo e do sangue de Cristo sem a devida consciência da sua miséria, somam para si condenação (1Co 11.29). A Escritura, reafirmo, deixa claro que somos inimigos de Deus, o que nos é terrível. Hoje é dia de abandonar a autossalvação, de se render pela graça ao Evangelho e não buscar em nós qualquer tipo de Justiça, somente naquele que é ofertado pelo Pai, no Filho por intermédio do Espírito (Rm 1.17).

            O Apóstolo Paulo tantas vezes nos alertou da graça soberana desse Deus irado com o pecado, mas que por Cristo, agora nos oferece perdão e amor pela sua maravilhosa graça. No Evangelho, nós, que estávamos mortos em nossas transgressões e pecados recebemos vida. O que fizemos para ser libertos das garras de Satanás, das inclinações da carne, do curso desse mundo, dos pensamentos maliciosos? Nada, absolutamente nada! Éramos prisioneiros e Deus, em sua rica misericórdia, livremente nos libertou pela sua graça. Não há orgulho em nós, apenas graça, e um chamado a uma vida de gratidão. Lembro-me das palavras de Jonathan Edwards[5], à sua igreja em Northampton, no intitulado livro “Pecadores nas mãos de um Deus irado”:

Ó pecador! Considere o pavoroso perigo em que você se encontra: é uma grande fornalha de ira, um abismo imenso e sem fundo, cheio do fogo da ira, sobre o qual você está suspenso pela mão daquele Deus cuja ira é provocada insuflada contra você tanto quanto contra muitos dos condenados ao inferno; você está pendurado por um fio tênue, com as chamas da ira divina flamejando ao redor dele, prontas a todo momento a chamuscá-lo e queimá-lo, e você não tem interesse em nenhum mediador nem tem nada em que se apegar para salvar a si mesmo, nada que mantenha longe as chamas da ira, nada seu, nada que já tenha feito, nada que possa fazer, para induzir Deus a poupá-lo por um só momento (p. 143).

            Este terrível sermão pode se tornar o refrigério daqueles que passaram pela tormenta de olhar para si mesmos e perceber a miséria em que se encontram. O apelo de Edwards aos pecadores vem em seguida:

            Agora Deus está pronto para ter compaixão de você. Este é um dia de misericórdia. Você pode agora com algum alento de obter misericórdia; mas, quando o dia da misericórdia tiver passado, seus clamores e gritos mais lamentosos e cheios de dor serão em vão (p. 144).

            Irmãos, que reconheçamos a graça de Deus hoje em nossas vidas, não nos apeguemos a qualquer tipo de obras mortas, e não venhamos nos gloriar em nossa santidade, procedimento ou capacidade como se isso pudesse nos colocar em posição de vantagem diante de Deus. Lancemo-nos nos pés do Nazareno, clamemos prostrados como o cego fez: “Filho de Davi, tem misericórdia de mim” (Lc 18.38). Os que se prostram são os agraciados, aqueles que por Deus são humilhados são pelo Evangelho exaltados e se assentam com Cristo nas regiões celestiais (Ef 26). Meditemos na maravilhosa graça de Deus que recebe com festa o Filho arrependido, que resgata a ovelha perdida e que faz pobres e doentes alvos do seu amor.

Conclusão

            O Sola Gratia não é simplesmente mais um tema da história da reforma, sobretudo é uma doutrina fundamental para a nossa compreensão do Evangelho e vida da Igreja. A luz que brilha nas trevas é graça, é Deus agindo livremente em favor daqueles que o desprezavam, é o coração de pedra substituído pelo coração de carne (Ez 36.26) é intervenção divina na história humana. Quem são Lutero, Zuínglio, Calvino ou qualquer outro reformador? Pecadores nas mãos de um Deus Santo, Justo e misericordioso; são instrumentos da graça de Deus. Reverenciar o “Sola Gratia” com doutrina e fruto da reforma é reverenciar os feitos e maravilhas de Deus. Assim como no passado, clamamos mais uma vez pedindo a Deus que pela sua graça. Que a luz do Evangelho brilhe nas trevas de nossa sociedade, despertando pecadores de todos os lugares do mundo. A Deus toda glória, amém


[1] Confissões de Agostinho, Porto 1966.

[2]Alister McGrath 2005, p. 59. Teologia Sistemática Histórica e filosófica.Publicações Shedd. São Paulo, SP.

[3]João Calvino 2022, As Institutasvol 2 p. 19, editora cultura cristã. São Paulo, SP.

[4] História Ilustrada do Cristianismo, vol 2.2011 Vida Nova. São Paulo, SP.

[5]Smith, Stout, Minkema 2022. Jonathan Edwards, Uma antologia. Vida nova. São Paulo, SP.

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