Talvez, em um primeiro momento, possa soar estranho aos nossos ouvidos o termo ‘catecismo’ ou até mesmo o uso do ‘Credo Apostólico’ como uma das confissões de fé em nossa igreja. E esse estranhamento é compreensível, pois o nosso contexto cultural-religioso nos leva a pensar que o Credo ou o termo ‘catecismo’ são elementos exclusivos da Igreja Católica Romana. Porém, precisamos esclarecer que os credos, os catecismos, e também as confissões de fé, exerceram funções importantes no decorrer do processo histórico da Igreja Protestante até chegarmos aqui.
O Credo Apostólico
Primeiramente, quero destacar o surgimento do Credo Apostólico por volta dos séculos II e VII (não há um registro exato sobre quando ele foi escrito). O que se pode afirmar é que, em seus primeiros séculos de vida, a igreja cristã passou por um significativo crescimento e houve a necessidade de definir os pontos fundamentais da fé para aqueles que estavam se “filiando” ao cristianismo.
Além disso, o Credo Apostólico serviu como uma declaração apologética. Ou seja, ele foi usado em defesa da fé cristã diante das especulações e heresias que surgiram na época. Há inclusive relatos de que o Credo teria sido usado em refutação ao Gnosticismo, que era um movimento religioso mesclado à filosofia grega e que negava a divindade e a encarnação de Cristo, bem como a validade expiatória de seu sangue e a sua ressurreição literal e corpórea.
Por isso, observamos que o Credo traz declarações que enfatizam a triunidade de Deus, apresentando o Pai, o seu Filho Unigênito e o Espírito Santo, ressaltando sobretudo a centralidade do Filho, sua encarnação, sua morte na cruz e sua ressurreição dentre os mortos. Também enfatiza a Igreja Santa em seu aspecto comunitário (comunhão dos santos) e as dádivas que ela recebe a partir da salvação em Cristo e da ação do Espírito: perdão dos pecados, ressurreição do corpo e a vida eterna.
Portanto, é possível reconhecer que ainda hoje o Credo Apostólico cumpre um papel excelente na instrução de novos convertidos e dos candidatos ao batismo, pois traz os princípios mais básicos da fé cristã. Porém, devemos saber que ele não esgota todo o ensinamento bíblico e ele não desenvolve conceitos doutrinários mais complexos, que também são importantes para a compreensão e o crescimento de todos os cristãos.
Os demais documentos confessionais
Podemos agora falar dos demais documentos que surgiram do período pós Reforma Protestante, quando a Igreja se viu diante da necessidade de resgatar e formalizar os princípios de sua fé e sua identidade, a partir (é claro) das Escrituras Sagradas. Assim, surgiram outros credos, catecismos e confissões mais elaborados e que desenvolvem assuntos mais profundos e complexos da doutrina cristã, sendo que alguns deles surgiram como o resultado de importantes Assembleias e Concílios da História da Igreja Protestante.
Em geral, o que se pode observar desses documentos é que eles possuem quatro objetivos em comum:
a) Declaratório: dar testemunho aos outros acerca da fé pessoal e coletiva (1 Pe 3.15).
b) Apologético: mostrar às autoridades e a outros grupos religiosos que a fé reformada estava em harmonia com as Escrituras.
c) Didático: ensinar aos fiéis (inclusive crianças, jovens e novos convertidos) as verdades centrais da fé bíblica. [1]
Em suma, esses documentos podem ser reconhecidos como boas ferramentas pedagógicas, tanto para as classes de escola dominical, batismo e formação cristã, quanto para o uso litúrgico nos cultos, sendo que alguns deles são indicados até mesmo para o ensino das crianças.
A seguir estão listadas algumas das principais declarações confessionais reformadas: [2]
Confissões de fé:
– Sessenta e Sete Artigos (1523): apresentados por Zuínglio no primeiro debate teológico em Zurique.
– Confissão de Genebra (1536): apresentada por João Calvino e Guilherme Farel às autoridades de Genebra
– Segunda Confissão Helvética (1566): escrita por Johann Heinrich Bullinger, apresentando o calvinismo como o cristianismo evangélico que está em harmonia com os ensinos da igreja antiga
– Cânones do Sínodo de Dort (1619): o Sínodo de Dort ou Dordrecht, na Holanda, foi convocado pelo governo para resolver a controvérsia arminiana, tendo a participação de teólogos reformados de diversos países. Seus cânones constituem os chamados “Cinco Pontos do Calvinismo”, sintetizados com as seguintes expressões: Depravação Total, Eleição Incondicional, Expiação Limitada, Graça Irresistível (Vocação Eficaz) e Perseverança dos Santos. É um dos documentos doutrinários oficiais das igrejas reformadas da Holanda.
– Confissão de Fé de Westminster (1646): redigida por mais de 120 teólogos calvinistas (ingleses e escoceses), reunidos na Assembléia de Westminster, em Londres, mediante convocação do Parlamento
Catecismos
– Instrução na Fé (1537): escrita por Calvino pouco depois de se radicar em Genebra
– Catecismo de Genebra (1542): um longo documento escrito por Calvino
– Catecismos de Heidelberg (1563): principal documento da Igreja Reformada Alemã.
– Catecismos de Westminster (1647): o Catecismo Maior compõe-se de 196 perguntas e respostas e se divide em três partes: 1) A finalidade do homem, a existência de Deus e as Escrituras Sagradas (perguntas 1-5); 2) O que o ser humano deve crer sobre Deus (6-90); 3) Quais são os nossos deveres (91-196). Algumas seções especiais são: Cristo, o Mediador (36-56), os Dez Mandamentos (98-148) e a Oração do Senhor (186-196). O Breve Catecismo tem 107 perguntas e respostas. A parte central trata da lei de Deus e dos Dez Mandamentos (perguntas 39-83).
Obviamente, como bons reformados, declaramos “Sola Scripturas” (Somente as Escrituras), pois ela é a Palavra de Deus e é a autoridade suprema sobre todo e qualquer escrito, além de ser a nossa única regra de fé e prática. Mas, por outro lado, não é um erro utilizarmos as confissões, os credos e os catecismos como instrumentos auxiliares no estudo das doutrinas fundamentais da fé cristã. Esses documentos não tem a mesma autoridade que a Bíblia e não podem substitui-la. Porém, devemos reconhece-los por suas riquezas históricas e teológicas, fazendo valer o zelo doutrinário e o trabalho apologético de nossos irmãos do passado.
E assim, termino com uma observação feita por John Stott:
“Desrespeitar a tradição e a teologia histórica é desrespeitar o Espírito Santo que tem ativamente iluminado a igreja em todos os séculos.”
Por: Carla Souza
[1] Extraído do artigo Identidade Reformada e Confessionalidade, publicado no site do CPAJ: https://cpaj.mackenzie.br/historia-da-igreja/movimento-reformado-calvinismo/confissoes-reformadas/identidade-reformada-e-confessionalidade/
[2] Idem.