Mark Dever, em seu livro “9 marcas de uma igreja saudável”[1], aborda a importância da teologia bíblica na igreja, destacando o papel central das Escrituras em revelar primeiramente a natureza de quem Deus é e as suas obras.
Apesar de causar arrepios em muitos cristãos, a palavra teologia é um termo comum e inevitável para leitores e estudiosos da Bíblia. Podemos definir teologia como a busca do conhecimento de Deus. Assim, toda pessoa que tenta elaborar um conceito do divino, quer seja em uma tese acadêmica, quer seja na tentativa de formar um embasamento para si, de alguma maneira já está fazendo teologia.
Existem muitos tipos de teologia[2], cujas variações se devem a alguns fatores, entre eles as fontes e os objetos de pesquisa e estudo. A teologia bíblica, assim como a sistemática cristã, usam primariamente as Escrituras Sagradas (AT e NT) como fonte para as suas formulações.
Normalmente, o teólogo cristão (e “todo cristão é um teólogo”) assume a premissa que a Bíblia (os “cânones”[3] sagrados) é a Palavra inspirada e inerrante de Deus, gravada em escritos para guiar o povo eleito Dele em conhecimento e maturidade a respeito do Evangelho.
Quando falamos sobre a necessidade de uma igreja local ter em seu DNA uma teologia bíblica, estamos ressaltando que este é o fundamento mais importante que leva uma comunidade de fé a se desenvolver em uma doutrina e em uma prática saudável.
Se a Bíblia é a nossa regra de fé e prática[4], e é também a forma especial pela qual nós conhecemos a Deus, então do que se trata o conteúdo que nela está apresentado? Mark Dever vai dizer que,
“podemos resumir a grande linha histórica da Bíblia em apenas cinco palavras: isto é o que a Bíblia nos ensina a respeito de Deus: Ele é criador, é santo, é fiel, é amoroso, é soberano (p. 63)”.
O Deus da Bíblia é um Deus criador
“No princípio, criou Deus os céus e a terra (Gn 1.1).”
O início do relato bíblico, em Gênesis, não é uma tentativa de tentar explicar o início da existência de Deus, já que essa não é uma preocupação para os escritores bíblicos. Na verdade, as Escrituras revelam a ação graciosa do Deus que existe eternamente e que, em determinado momento da existência, transbordou o seu ser, criando tudo o que conhecemos com os nossos sentidos.
Deus criou o universo por meio da sua palavra, criou a humanidade e, posteriormente, criou um povo entre os outros povos[5]. A narrativa bíblica também mostra como esse Deus criador se relaciona com a sua criação. Logo, muito mais do que contar a história de “personagens”, a Bíblia fala de um Deus criador que está em cena com a sua criação.
Interessante notar, por exemplo, como o Credo Apostólico[6] começa o seu tratado sobre Deus com a expressão “Deus Pai, todo poderoso, criador dos céus e da terra”. Tal afirmativa inicial do Credo é de suma importância para o desenvolver da fé e da vida cristã, visto que é parte fundamental da revelação especial de quem Deus é e daquilo que ele faz.
O Deus da Bíblia é um Deus santo
[…] Ele não é um Deus moralmente indiferente, como algumas pessoas imaginam que Ele seja – Como se houvesse criado o relógio e dado corda; depois, houvesse se retirado e deixado o relógio trabalhando sozinho. As coisas não ocorrem dessa maneira. Deus não está desinteressado de sua criação. Não. Quando lemos as passagens da Bíblia, percebemos que existe um Deus que tem paixão por santidade (DEVER, p. 66, 2007).
Deus é santo. Isso significa que ele é puro e perfeito, enquanto a humanidade é pecadora e imperfeita. No entanto, Deus também exige santidade do seu povo, pois este foi criado para ser à imagem e semelhança do seu Criador. Ou seja, Deus é santo e o seu povo também deve ser. Assim, quando Deus estabelece as alianças, Ele está declarando publicamente a sua intenção com um povo em específico e está prometendo relacionar-se com esse povo de uma maneira exclusiva.
Deus é apaixonado pela santidade. Entretanto, o que a Bíblia deixa claro é que o homem é um transgressor, não simplesmente moral, mas um rebelde por definição. O pecado é no homem um vírus que deforma a sua identidade em Deus, desfigurando os rostos que foram feitos para refletir a glória do Eterno.
Enquanto o pecado nos separa de Deus, ele também atrai para nós a justa punição e o juízo de Deus. Logo, a nossa morte se torna inevitável, pois o Deus Santo e Justo não tolera o pecado, ou seja, Ele não tolera tudo aquilo que é contrário à sua natureza. Observamos que, em toda a narrativa da Bíblia hebraica, é clara a recorrência dessa trama entre santidade e pecado, alianças, pactos e transgressões por parte do ser humano, do qual toda a maldade se multiplica e torna a morte uma realidade à toda criação.
Contudo, o Deus que é santo, providencia expiação provisória para pecadores, punindo animais inocentes, por meio de sacrifícios cerimoniais e regulares, de forma a sustentar de alguma maneira o povo da aliança e sinalizar o sacrifício que em Cristo seria feito definitivamente. Assim, percebemos em toda a narrativa do Antigo Testamento, o Deus que é apaixonado por santidade e que proveu meios e maneiras de manter o relacionamento com os seus eleitos.
Agora podemos partir para outro ponto: além de santo, o Deus da Bíblia é fiel às suas promessas.
O Deus da Bíblia é um Deus fiel
Deus é fiel, e essa não é uma simples frase para plotar no seu carro. Pelo contrário, a fidelidade de Deus é um de seus atributos. A Bíblia também deixa isso evidente em sua narrativa: Deus zela por todas as suas promessas e palavras (Nu 23.19).
Lembre-se das primeiras palavras de Deus dirigidas à Adão sobre a consequência da transgressão de desobedecer a ordem Dele e comer do fruto proibido[7]: “certamente morrerás (Gn 2.17)”. Mas, o que dizer então sobre o texto de Êxodo 34.6-7, sobre as palavras que Deus dirigiu à Moisés? “Que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado…” Como podemos conciliar essas atitudes e características imutáveis de Deus com todos aqueles outros aspectos de bondade, misericórdia, justiça, e etc?
A resposta para essas perguntas se respondem em Cristo e somente nEle. Em Jesus as narrativas bíblicas fazem sentido e o nosso entendimento sobre Deus se torna claro e possível. Portanto, quando falamos que as Escrituras apresentam Deus como o seu conteúdo central, podemos afirmar também que tudo faz mais sentido quando Jesus sobe explicitamente no palco, no qual se passa toda a trama bíblica.
E agora, reafirmando a fidelidade de Deus, sabemos que tanto a promessa de punição do culpado pelos pecados, quanto a promessa do Messias Salvador se cumpriram. Deus é fiel aos seus pactos. Ele realizou a sua obra de redenção e amor por intermédio de Jesus, na cruz do Calvário. Portanto, podemos dizer com todas as letras que o Deus da Bíblia é um Deus fiel, pois Ele cumpriu a sua promessa no Cristo Crucificado e certamente completará a sua obra na segunda vinda do seu Ressuscitado.
O Deus da Bíblia é um Deus amoroso
“Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do SENHOR? Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso. Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos (Is 53.1-6).”
O amor de Deus fica explícito em Jesus. Primeiramente, Deus ama Jesus. Logo, o amor do Pai para o seu filho Jesus também é derramado em nossos corações porque fomos salvos e remidos pela morte do filho e fomos enxertados em quem Ele é.
Sabemos que o inocente filho amado de Deus assumiu a nossa culpa e também a nossa condenação na cruz do Calvário. Tal é a paixão de Cristo[8]. A maior demonstração do amor de Deus. Pela morte de Cristo recebemos a vida, e é a partir dessa vida que temos as lentes necessárias para compreendermos o Deus trino e percebemos o quanto Ele é amoroso, ao ponto de amar intencionalmente e planejar a história da redenção para salvar o seu povo amado (1Jo 4.8). Deus é justo, santo e amoroso. Esses são atributos que devem ser ressaltados naquEle que também é o Soberano.
O Deus da Bíblia é um Deus soberano
“Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles (Ap 21.1-3).”
Caro leitor, não são poucas as palavras necessárias para este rico assunto. A soberania de Deus é um elemento muito importante da teologia bíblica, algo que não pode ser ignorado na jornada pelo Livro Sagrado. Finalmente, ao observar o todo, nosso maravilhamento deve ser imediato. Deus é soberano, pois ele está por trás de toda a narrativa Bíblica, e sua vontade suprema é cumprida em cada versículo que lemos.
O Deus criador, santo, fiel, amoroso e soberano se apresenta aos leitores da Bíblia. Por isso, a igreja que tem o seu DNA fundamentado nessas verdades caminha para ser uma igreja saudável, cumprindo com qualidade a sua função na terra: congregar os santos em torno da revelação especial de quem Deus é e o que Ele fez e faz.
Percebemos então que todos os pontos se convergem. Os links e hiperlinks estão conectados. Deus, conforme vai se revelando na história, revela também a sua vontade e o futuro que Ele planejou. Em um ciclo de glória, todas as coisas se encontram em Jesus. E, dessa maneira, nos encontramos com o Autor da Bíblia. Quando este é o caminho da Teologia, podemos nos aprofundar ainda mais e sem medo nessa busca por Deus.
Ao ensinarmos em nossas igrejas sobre a soberania de Deus, estamos trabalhando diretamente para a edificação de uma congregação saudável, pois ignorar esse aspecto da identidade de Deus é, sem dúvida, deixar a imunidade da igreja baixa. Pessoas que compreendem a soberania de Deus e descansam nessa prerrogativa bíblica se tornam pessoas maduras e firmes na fé Cristã.
Alguém disse (e muito precisamente, na minha opinião), que: “A Bíblia termina como começa”. E não é lindo perceber que Deus não perdeu o controle da história e que em seu plano soberano ele se revelou ao seu povo de maneira muito específica e especial? A trama teológica bíblica anuncia claramente o Deus criador, santo, fiel, amoroso e soberano. Por isso, ao terminar este texto, lembremos das palavras do apóstolo Paulo se maravilhando ao contemplar a obra soberana de Deus:
“Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Por que quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém. (Romanos 11:33-36)”
[1] Livro publicado pela Editora Fiel em 2007, Mark Dever
[2] Bíblica, sistemática, histórica, filosófica, teologia prática, do Antigo Testamento, do Novo Testamento e etc.
[3] 66 livros reconhecidos pela tradição cristã patrística e protestante.
[4] Expressão usada em confissões reformadas, em especial na de Westminster.
[5] Ele faz isso, quando ele Abrão.
[6] Um dos mais importantes documentos confessionais da fé cristã.
[7] Aparentemente, não comer de um fruto especifico de uma arvore especifica, era a única restrição a humanidade, todas as outras coisas eram possiblidades no jardim
[8] Para maiores informações, indico a obra de John Stott, A Cruz de Cristo, publicado pela Editora Vida 2006